Os caros leitores
lembram-se de um amigo deste escriba divorciado, pai de dois filhos, que protagonizou
algumas postagens desta tranqueira? O homem por volta dos quarenta anos
que tenta equilibrar os papéis de pai dedicado e sujeito com direito a ter
uma vida amorosa pós-divórcio? Lembram-se dele, caros leitores? Lembram-se que
ele, quase sempre e invariavelmente, se dava mal em suas infindáveis tentativas
de manter esses dois aspectos de sua vida em equilíbrio? Pois então, acompanhem
a última desventura vivida por ele, a qual, segundo o próprio, o levará a rever
e mudar certas práticas de sua vida pouco afortunada...
Domingo,
bem no início da tarde, uma tarde cinzenta, chuvosa e tristonha,
aliás. Estava o protagonista desta postagem na casa de sua atual, hã,
acompanhante, parceira, chamem como quiser, pois ele, devido às inúmeras
porradas que tomou nos últimos anos, resiste imenso a chamar as mulheres com
quem se relaciona de namoradas. Podemos condená-lo por isso?
Não
bastasse sua atual acompanhante não se empolgar em acompanhá-lo ao
almoço de aniversário da esposa de um grande amigo dele, amigo de muitos e
muitos anos, eis que seu celular toca e um de seus filhos não perde um
segundo para questioná-lo se ele se esqueceu que havia um evento obrigatório e
sensacional promovido pela escola em que ambos estudavam, evento
que claro, ele tinha se esquecido e que se desenrolava naquela exata tarde. E
claro que o filho disparou as chantagens emocionais que os filhos,
principalmente os filhos de um pai que cometeu o crime de se separar da querida
mamãe das crianças, sempre disparam. Tudo ficou escuro na frente do sujeito,
que viu-se em um entrevero sem solução. Atordoado, balbuciou algumas
palavras perdidas e inseguras, que fizeram o filho, também atordoado, supor que
o pai não compareceria, e reagir simplesmente se despedindo com palavras secas
e desligando o aparelho para espanto de seu progenitor.
Os
leitores são capazes de imaginar o desalento que dominou o sujeito? Eu também
não.
Após
uma rápida conversa com sua companhia, que se mostrou a um só tempo
compreensiva e aliviada e anunciou que não o acompanharia em sua jornada, ele
ligou para o telefone da adorável mamãe de seus filhos, que como sempre o
tratou como uma fusão de imbecil que cai em qualquer lorota e canalha
desprezível e afirmou que os dois filhos estavam tristes, pois em uma
festa com a presença de mais de cem crianças e adolescentes eles seriam os
únicos sem papai presente. Meu amigo respirou fundo, acalmou-se, não invocou os
poderes dos maiores ferozes demônios do inferno para castigá-la (bem, ele não
faria isso de modo algum, pois como eu é um ser racional e ateu
convicto), pediu o endereço do evento imperdível e saiu em uma louca
jornada cidade afora. Saiu dos extremos da zona oeste, depois do campus da USP,
atravessou a cidade coberta de garoa para alcançar um ponto da zona sul não
distante do Jardim Zoológico, e adentrou o salão de festas de um clube de
bairro de classe média decadente e posuda, onde acontecia a tal festa para
angariar fundos para a festa de formatura da escola. Após receber os abraços e
atenção de suas crias, circular com eles para lá e para cá, pagou (caro) pela
comida que era servida e esperou. E esperou. E esperou pela refeição, que nunca
surgia. E o escoar do tempo lembrava, inclemente, que era esperado em outro
evento, nos calcanhares-de-judas da zona norte. Assim, ele não vê outra solução
e cobra a refeição pela qual pagou, há quase uma hora, para os voluntários que
trabalham no tal evento. Nesse momento ele descobre que a adorável mamãe de
seus filhos trabalha na cozinha como voluntária, controlando a preparação dos
pedidos que chegam...Logo a comida é posta diante dele, que não consegue
reprimir sua imaginação, especula o que colocaram naquela mistura. Nesse
instante ele cogita se iniciar na arte do jejum voluntário, mas diante dos
olhares de seus filhos, ansiosos por ele prestigiar a festança, ataca o
conteúdo do prato com furor e logo após parte o mais rápido possível para os
extremos do norte da cidade, cidade que continua toda coberta por uma capa de
cinza, garoa e pasmaceira.
Após
enfrentar hordas de domingueiros desastrados e selvagens no trânsito, alcançou
os estertores de uma das mais longas avenidas da zona norte, já nos arrabaldes
da serra que domina essa região de São Paulo. Procura, procura, nada do prédio
descrito por seus amigos como local da comemoração. Irritado e cansado,
telefona para os anfitriões e descobre que está na extremidade errada da
avenida, o local da festa situa-se no primeiro quarteirão desta, a mais de dois
quilômetros de distância!
Mas
uma vez lá, um pouco de merecido repouso e alívio: encontra-se entre amigos de
muitos anos, ninguém nesse grupo julga ou condena os demais, todos são
compreensivos, fraternais; a bebida corre solta e meu amigo manda o juízo às
favas e trata de se embebedar, ou quase isso; a comida é farta, saborosa - e confiável.
Após quase duas horas de pura alegria, seu telefone celular toca mais uma
vez. É sua atual companhia feminina, que com a voz lânguida e irresistível que
só as mulheres possuem, pergunta se ele ainda vai se demorar por lá, pois já
está 'com saudades dele, rolando na cama...' E lá se vai o intrépido
desbravador dessa miscelânea de horror, tédio e mentiras que é a vida adulta
mais uma vez rumo aos fundos da zona oeste, assim completando sua saga
dominical São Paulo afora.
Encerro
esta postagem com o comentário espirituoso com que meu amigo terminou a
narração de sua aventura: "Cara, me senti uma daquelas aves - gansos,
patos - que são mostrados nesses documentários de vida animal, que migram
milhares de quilômetros, em bando. Me senti como um deles, que se perdeu dos
outros e ficou para lá e para cá, como um idiota, debaixo de neve e chuva,
atrás do grupo!"
Nada
mais a acrescentar,
Saudações
canalhas e cafajestes